Muito além do remo: como a canoa protege a gente da solidão
- Caio Carvalho
- há 15 horas
- 5 min de leitura

Tem uma palavra que expressa um sentimento profundo e que começou a aparecer em todo canto: solidão.
Não como algo romântico, de filme, mas como um problema de saúde mesmo.
Especialistas já falam que estamos vivendo uma “epidemia da solidão”.
Gente cercada de estímulos, de notificações, de barulho… e, ao mesmo tempo, se sentindo profundamente só.
No meio desse cenário, eu olho para a canoa, para os clubes, para as nossas remadas em grupo e penso:
a gente não tem ideia do tamanho do remédio que tem nas mãos.
A solidão em tempos da mega exposição e a hiper conexão
Um dos últimos vídeos que assisti recentemente, da GloboNews, sobre esse tema me pegou em cheio.
Ele fala de como nunca estivemos tão “conectados” e, ao mesmo tempo, tão desconectados de nós mesmos e dos outros.
A solidão de hoje não é só de quem mora sozinho ou vive isolado.
É também de quem:
está sempre em reunião, mas não se sente escutado;
compartilha tudo no feed, mas não tem com quem desabafar fora da tela;
convive com muita gente, mas sente que, se sumisse por uns dias, pouca coisa mudaria.
E, analisando o comportamento de muita gente, que chega na canoa, percebo que há sinais dessa solidão.
Às vezes é por causa de um término de relacionamento, de um burnout mau cuidado, de uma mudança de cidade, de um luto silencioso ou só daquela sensação de “não pertencimento”.
Quando a tribo se encontra na beira do mar
Tem um rito simples que quem rema conhece:
alguém manda no grupo: “Treino confirmado, 6h na base”;
você pensa em desistir, mas vai assim mesmo;
chega meio no automático, meio cansado, meio cheio de pensamentos sobre coisas que nao tem nada haver com aquele momento.
Aí, de repente, o clima muda:
vem a piada interna;
o abraço apertado de quem você só vê ali;
a mão que ajuda a carregar e amarrar a canoa;
o ajuste de banco, o “hoje você vai de voga, hein”;
aquele olhar que diz: “bora, hoje você não está sozinho.”
No meu caso, isso tem nome e sobrenome.O Ruan e o Binho, da Kanaloa Arraial d’Ajuda, são dois caras que sempre me fazem lembrar disso.
Quando eu dou uma afastada, é batata: logo vem, “some não, hein”, ou um “volta pra canoa Caião... seguido por aquela boa pitada de baianidade”.
E hoje, vejo nisso, algo muito mais profundo, do que apenas uma lembrança ou um convite para retomar os treinos.
É um lembrete de pertencimento.
Quando a canoa entra na água, algo alinha por dentro.
O mundo lá fora continua caótico, mas ali a regra é outra: ritmo, respeito, presença.
E, sem perceber, a sensação de solidão começa a rachar:
no “tá tudo bem mesmo?” depois do treino;
no “tava sentindo tua falta na água”;
no convite para aquele café pós-treino.
A canoa como "posto de saúde emocional"
Pois é… posto de saúde foi boa né?
Se, segundo a OMS, a solidão se tornou uma epidemia, os clubes de va’a (e de outros esportes coletivos) são, na prática, pequenos postos de saúde emocional e motivacional.
Eles combatem a solidão de jeitos muito fortes:
Pertencimento de verdade: Você não é apenas “aluno”, é parte de uma tripulação. Tem história, tem apelido, tem banco. Se não aparece, faz falta.
Ritual e constância: Em um mundo líquido, onde tudo muda o tempo todo, o treino vira âncora.“Terça e quinta eu tenho canoa.”Essa frase simples organiza a cabeça e o coração.
Cuidado mútuo: Quando um está fraco, o outro compensa. Quando alguém some, alguém pergunta. Quando a maré aperta o cerco, ninguém abandona o banco no meio da remada.
A ciência já mostra, há muito tempo: quem tem laços sociais fortes vive mais, adoece menos e sofre menos com estresse.
Na canoa, esse laço é quase literal: se um esta mal, todo mundo sente.
Cuidar da solidão com a mesma seriedade que cuidamos da técnica
Se a gente, agora sabe melhor, que a solidão machuca, por que não cuidar disso com a mesma atenção que damos à técnica de remada?
Algumas ideias simples para clubes e tribos de canoa:
Falar do tema sem tabu: Trazer a solidão, o cansaço, a saúde mental para roda de conversa, sem julgamento. Não é transformar o treino em terapia, é só lembrar que ninguém é robô em um mundo que só se fala de inteligência artificial.
Criar pequenos rituais de conexão: Um check-in rápido antes ou depois do treino:“De 0 a 10, como você chegou hoje?” Às vezes esse é um ato simbólico e suficiente para alguém não se sentir invisível.
Olhar com carinho para quem está, às vezes sem perceber, transbordando: O iniciante que chega tímido. Quem começou a faltar sem explicar. A pessoa que está sempre ajudando todo mundo, mas nunca fala de si.
Quando a gente entende que a canoa é também ferramenta de cuidado, o treino ganha outra camada.
Não é só sobre performance, é sobre proteção: contra a depressão, o isolamento, a sensação de que ninguém nos vê.
Um convite pra quem rema (e pra quem ainda vai remar)
Se você já tem uma tribo na água, agradeça por isso.
Honre seus horários, seus combinados, seus companheiros de canoa.
Perceba quem está do seu lado.
Pergunte mais “como você está?” e menos “quanto deu de média?”.
Se você ainda não faz parte, talvez esse texto seja o sinal que faltava:
para chamar aquele clube que você já segue faz tempo;
para voltar depois de uma pausa longa;
para experimentar uma aula sem compromisso e ver como é.
Num mundo em que a solidão está a cada dia se transformando em um peso silencioso, cada canoa que sai da areia cheia de gente diferente remando na mesma direção é um ato de resistência. Percebem?
Porque, no fim das contas, a frase é simples:
A gente até pode se sentir sozinho às vezes. Mas ninguém precisa remar essa vida sozinho.
Referências
Esse texto nasceu depois que eu assisti ao especial “Sós – Os perigos da solidão”, da GloboNews, que mergulha nas histórias de pessoas solitárias em diferentes países e mostra o tamanho dessa crise global. YouTube
Para além do vídeo, algumas leituras brasileiras que valem muito após a remada:
a coluna da psicóloga Ilana Pinsky, na Veja, sobre por que conexões sociais nunca foram tão importantes; VEJA
e o artigo da Fiocruz / Cadernos de Saúde Pública mostrando que o antídoto passa justamente por comunidades, vínculos e apoio mútuo. Cadernos ENSP
Aloha, e nos vemos na água canoa.
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